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Monday, May 05, 2008

A capital da dor

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Para Sandra, que tanto me disse para assistir...


*

Hoje eu vou tentar uma escrita surrealista. Qual, perguntei, eu, meio displicentemente, porque pouco o ouvia. Talvez fosse falta de atenção. Qual, repeti, com um pouco mais de afinco. Aquela que a gente escreve sem se preocupar com a ordem, a gramática e a semântica. Ah, aquela que vem sem ponto, disse eu, como se entendesse. Na verdade eu não entendia, como em Alphaville**, o significado de somar. Não bastavam as composições de palavras, afinal, algumas palavras simplesmente não estavam no vocabulário que me tinham ensinado. Dar novos sentidos era meu problema naquele momento. E um problema que teria de enfrentar sozinha: “...salve estes que lamentam... de qualquer modo, é a minha viagem até o fim da noite”, pensei.

Ele continuava em meio a papéis, dizendo que sim, as pessoas haviam se tornado escravas de probabilidades. Quais números, perguntava insistentemente, mas agora ele parecia não me ouvir, talvez adentrava portas de recintos não habitados, talvez procurava a si mesmo enquanto se perdia no labirinto da solidão. Haveriam muitos talvezes. Ele me disse que eu poderia inventar palavras, e plurais também. Eu me senti mais aliviada. E ele disse, sutilmente, ‘entendo’...

Enquanto houvesse a lacuna da fronteira intransponível, por mais palavras que se utilizasse, e por mais que o vocabulário se tornasse mais específico para as realidades forjadas a cada dia, não haveria comunicação. Eu disse ‘que brilhante a tua conclusão’, mas ele tratou como se fosse ironia. Que nada. Eu estava pensando naquela parte em que tudo ficava cinza, posto que os pensamentos eram amenizados, e nós nos libertávamos para simplesmente sentir, e assim, sem palavra alguma nos comunicávamos mais do que teses de 500 páginas, porque nosso olhar nos dizia algo mutuamente, sem dor.

Se minimizar exceções é o desejo destes portos, onde o que existe é apenas o presente, o presente, e o presente como fronteira intransponível, nós dizemos em coro (eu e ele), que somos todos únicos, terrivelmente únicos, que a lógica não nos condena, porque a ultrapassamos, e isto é uma escolha, e, se for criminosa, não nos importamos em habitar a noite, ou o exílio, se querem dizer assim, porque quando eu havia perguntado a ele “você sabe o que transforma a noite em luz?”, ele me respondeu “a poesia”.

Se estamos na capital da dor, nos amamos, e basta uma carícia. Ela nos conduz à nossa infância.


* Cena de Alphaville. Este texto foi baseado neste filme.

** Alphaville, de Jean-Luc Godard, 1964. “uma vez que nós conhecemos 'um', nós acreditamos que conhecemos 'dois'
porque um mais um é igual a dois. O que nós esquecemos é que temos que saber o significado de somar...”.



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3 comments:

  1. Amada!

    Embora algumas vezes a realidade "seja complexa demais para a transmissão oral", posso dizer que teu texto muito me tocou - o que não é lá grande novidade... (e ainda envaidecida pela dedicatória, ui!)
    Viu boneca? um dia ia chegar de tu assistir o tão amado, idolatrado, salve salve! filme do meu muso!! Muita saudade tbém. Vou bem. Obrigada. De nada.
    Medo...

    P.S.: Viste que no filme tem uma personagem que se chama Beatrice?
    heheheheh

    Beijo imeeeeeeeeeeeeeeeeeeeenso!

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  2. Sim... ela é uma sedutora de terceiro grau, daquelas "vou bem, monsieur, muito bem, muito obrigada!"... medo!! ^.^

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  3. Que isso, guria!!!
    Tens um ótimo gosto pra música, tiras excelentes fotos e ainda por cima escreves que é uma maravilha... só falta me dizer que sabes sambar ^^
    beijos!

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