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Monday, March 30, 2009

O duplo

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N'aquele dia dedicou um tempo mais vasto a olhar ao redor: sentou-se num dado momento em um banco frio, momento este em que geralmente almoçava sozinho e podia imergir em todas as suas mais recônditas sensações e indagações para com o mundo. Geralmente cumpria esse ritual isoladamente, assumindo um certa solidão desvalida, de quem olha para baixo, temendo o olhar alheio, e se concentra quase com medo de esquecer as atitudes mais naturalizadas do cotidiano.

Mas aquele era outro dia, e tinha inclusive outra luz esta tarde: era, ademais, não o momento de se sentir dono de uma verdade interior que se julgasse superior, mas o de se colocar aberto ao simples ato de olhar, uma despretensão para com o julgamento daquilo que vê, e uma íntima entrega ao que está ao redor, pois ali a realidade não era um 'dado', mas vários fragmentos para os quais ele poderia dar a ordenação que bem entendesse, como na construção de uma ficção que mudamos a disposição das partes, até nos perdermos na escrita. Ele se perdia no ato de olhar.

Nesta tarde, pouco mais de duas horas, pôs-se a observar as pessoas concentradas nas suas repetições, o almoço deixara de ser um ritual, era apenas um esmagar-sólido diante de tanta rapidez e convulsão. Estava inserido em um laboratório humano repleto de sentimentos e interesses díspares, muitos destes envolvidos apenas com aquilo que Descartes incitou como sendo o “EU”, este sujeito moderno desprovido da consciência da sua materialidade, consciência esta que nada mais é do que a consciência de que todo conhecimento provém da experiência, e se dá a partir do seu corpo, e dos afetos que lhe tomam os sentidos...

Na saída, depara-se com uma senhora vendedora de chocolates, uma figura que bem poderia se comparar às vendedoras de flores tão belamente reverenciadas por Chaplin em Luzes da Ribalta, e num ato impulsivo se põe a procurar uma moeda de um real perdida nos bolsos, escolhe dois bombons, um vermelho, recheio de amendoim, e um rosa, recheio de avelã. E ela lhe dá um de avelã de brinde, talvez porque troque poucas palavras e olhares com estas pessoas que hoje se alimentam basicamente de plastificados e enlatados, e ela, na sua condição de vendedora-de-chocolates-caseiros-em-porta-de-restaurante, pertença a uma profissão e a uma poesia que parece não caber mais neste mundo... E justo por isso lhe parece que um dos ensinamentos silenciosamente profundos desta senhora – alguém que talvez acabou dizendo mais do que supunha, no simples ato de enunciar o seu “- tome, é pra você” – é que o primeiro, o primeiro de todos os passos é, simplesmente, lutar contra a pressa.

Que nossa urgência seja apenas a de mudar a realidade das coisas que não nos permitem vivenciar com mais clareza, confiança, e entrega o tempo.

Eu, imerso naquela contigüidade de sombras e reflexos.

Eu, um duplo.

No dia em que imagem, palavra, vivência e memória se encontraram.

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Por que será que o Che tem este perigoso costume de seguir sempre renascendo, quanto mais o insultam, o manipulam, o atraiçoam, mais renasce, ele é o mais renascedor. Não será porque o Che dizia o que pensava, e fazia o que dizia? Não será por isso que segue sendo tão extraordinário, num mundo em que as palavras e os fatos raramente se encontram, e quando se encontram raramente se saúdam?


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Wednesday, March 11, 2009

Sobreposições imprecisas

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(Richard Peter Sen, 1945)


Se a Filosofia é, então, um conjunto de "cinzentos sobre cinzentos", os modelos explicativos do mundo que suscedem uns aos outros (filosóficos) não passam de verdades que tentam se sobrepor, sendo que a "verdade" é apenas um modo de ver o mundo, dentre tantos possíveis.
As ruínas assumem essa emergência de sobreposições de idéias, pois as que "não se deseja mais", tenta-se "apagar". Assim são as ruínas de guerra, mas também as ruínas do mais profundo do nosso cotidiano.
Apesar disso, as idéias resistem...
Mas, para se vivenciar uma experiência do pensamento, é necessário antes assumir que para se fazer Filosofia deve-se pressupor que a verdade simplesmente não existe...

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Diria, como num apêndice, que a verdade não existe - ao menos não desde o princípio -, uma vez que deve-se partir da inexistência da verdade, pois para se vivenciar a experiência do pensamento é necessário, antes de mais nada, uma abertura... E deter verdades absolutas é, sim, o modo mais eficaz de fechar-se para os deslimites do sensível e do pensamento (uma vez que toda matéria do pensamento se dá a partir da própria existência).

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Texto a partir da introdução de "Meta-história: a imaginação histórica do séc. XIX", de Hayden White. Ver: Spinoza, ética.




(pelas linhas tortas do caderno de memórias)

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(desculpa-me, mr. book)

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