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Thursday, January 15, 2009

[CINEM]Afeto e Memória

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{aquela lua, por bigatrice}

Dos idos anos em que o vídeo cassete estava sendo extinto, e locadoras se desfaziam de seus acervos, lembro da minha tentativa redentora de “salvar” alguns filmes que pensei jamais poder ver de novo. Tenho vários em minha estante, a maioria comprei por um real, talvez mais alguma moeda, mas nada que seja mais caro do que um maço de cigarros. Era, então, uma questão existencial, quase um vício. O que valia não era o preço, mas o valor estético/poético/político/e/afetivo que dava para aquelas imagens-movimento. De alguns poucos que recolhi (tratava-se, de alguma forma de cacos), tenho ainda alguns mofos.

Do Festen, ou “Festa de família”, de Thomas Vinterberg, que eu, de tão emocionada com o achado, comprei sem nem ao menos abrir a caixinha para ver o que tinha dentro. Chegando em casa, em euforia semelhante, depois de praticamente precisar “restaurar” o filme que continha no seu interior {a fita estava cortada, e tive de abri-la e colá-la com fita durex}, coloquei o filme e não conseguia acreditar que se tratava “agora” de um trash-cult-comedian film. Pois é verdade, o que eu tinha ali no interior era um exemplar de um filme que sequer recordo o nome, só lembro que era uma história de uma mulher que, tendo tantos pretendentes, não conseguia escolher nenhum deles para se casar. Pensa que, convidando a todos para jantar consigo em uma mesma noite, conseguiria, observando-os, decidir-se finalmente... Ao que, por dificuldade, resolve não ter a nenhum, e mata a todos {o que, de algum modo, faz com que tenha a todos}... Sei o roteiro porque, de tanta raiva, vi até o final... E tenho a fita até hoje, mesmo sem saber seu nome.

Um outro que levei comigo, pois pensava nunca mais vê-lo, era The Elephant Man, “O Homem Elefante”, de David Lynch. Acho que nem nos filmes de Lars von Trier chorei tanto como em “O homem elefante”... A crueldade mascarada de ajuda, a ciência como uma outra forma de manipulação do homem sobre o homem, criando saberes, mas não modificando o interesse por trás de seus poderes, a vontade de um homem dominar outro homem... O modo como estas atitudes nos parecem tão longínquas, a ponto de as concebermos como “humanas”... É aí que percebo que Nietzsche é tão mal compreendido quando pensam que ele foi o primeiro a dizer isso. E o quanto entendê-lo também como um teórico da vontade de potência nos supõe não uma “cura”, mas um novo modo de olhar para estas questões... E o quanto isto implica numa determinada compreensão de mundo e de filosofia {e, por conseguinte, de cinema}, pois já não importa superar o outro, mas superar-se a si mesmo...

A visceralidade com que Lynch trata neste filme estas relações é, a meu ver, uma das referências presentes nas obras de cineastas como Sergio Bianchi, em tratar sobre relações semelhantes, muito embora este se utilize de uma violência mais física – porém também baseada em comportamentos culturais – como meio de dialogar sobre temas tão fortes como este...

Eis que “O Homem Elefante” está aí em dvd, mas como hoje em dia a difusão da cultura já pode se dar de graça {ou não tão de graça assim, a Claro S.A., que não me deixa mentir}, fiz o download do filme e fiquei muito contente... Por mais efêmero que seja um arquivo de computador.

Mas um que eu nunca {nunca mesmo} pensei que iria encontrar, apareceu-me outro dia. Luna Papa, de Bakhtyar Khudojnazarov. Pureza, beleza, sutileza e um pouco de fantasia. Tudo o que é sublime ronda esse filme, a partir das relações de comunicação mais estranhas que as pessoas podem ter entre si... Poucas vezes um filme me deixou tão maravilhada com o que é mais simples na vida, como a areia, a terra, ou, o “outro”: a lua...

Também foi um filme que obtive de-graça-nem-tão-de-graça, e que, agora há pouco, ao assistir novamente as primeiras cenas – de somente 3 minutos – estas põe-me a observar não apenas a geografia do Tadjiquistão, mas os modos como as geografias podem afetar-nos, a ponto de nos conduzir a certos estados de alma que outras geografias podem (e devem) respeitar, mas não serão jamais capazes de entender, isso porque entendimento passa pela pele, pela experiência... E disso alguns filósofos também já falaram... Aqui, nos Pampas (essa geografia própria do sul do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da região leste da Argentina), o Vitor Ramil chamou de estética do frio...

Percebendo a geografia presente neste filme, as curvas do relevo, acentuadas pelos ângulos que as sinuosidades rochosas vão assumindo {ao longo do tempo}, este e outros fatores contribuem para o modo como as pessoas habitam, se movimentam, se comunicam... e até mesmo impõe o limite de até onde pode ir o seu horizonte {muito embora de cada diferente ponto que se olhe, haja um novo horizonte, como na vida}.

Penso que também pessoas podem ser sinuosas, tendendo a uma adaptação fugidia... Mas não apenas estamos fadados a uma geografia – a do nosso nascimento –, mas a escolhemos, diariamente, nos nossos valores...

O homem é de terra, e eu ainda não encontrei um horizonte que me satisfizesse mais que o Pampa. O horizonte infindo é o limite...

E é, realmente, complicado separar espaço e tempo...

Pois, quanto ao último, também a memória é bastante sinuosa... Foi justamente por conta destes três minutos de geografia-oscilante-em-filme que eu lembrei de tudo isso, e ao relembrar, de certa forma revivi. Revi e recriei o tempo em que eu, com dois reais no bolso, deixava de comprar um sorvete para ir até a loja de vídeos, para, sonhadora, poder salvar dois filmes do esquecimento.

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Acredito que com essas poucas mal-traçadas linhas eu tenha dito coisas bem minhas, do que espero por cinema, e do que espero por visualidade. Mas não .


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2 comments:

  1. Belzinha me contou do texto, vim logo acompanhar... lindodlindolindo! dia destes assisti um filme que fala de um cinema nobre assim: necessário, sem roteiro e vivo: Rebobine Por Favor. Um poema cinematográfico.
    Dos horizontes sinto saudades do que repousa a vista pro corpo se movimentar... gosto deste chão.

    bjo

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  2. Lindo texto. Lindas reflexões!
    Luna Papa... é difícil de esquecer, o filme, o afeto, a companhia...
    Beijo

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