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Thursday, August 17, 2006

O fascínio do fogo

Imagem do filme Fahrenheit 451, de François Truffaut
"Somos uma minoria de indesejados lamentando por zonas selvagens"

Como seria se fôssemos proibidos de ler? Como se constituiria a nossa subjetividade?

Os bombeiros que outrora apagavam incêndios ateiam fogo em obras milenares – a prática da leitura se tornou infame, e o livro um objeto de potência subversiva.

"Todos um dia desejamos saber o que eles contêm. Mas tenha certeza disso – eles não dizem nada, nada".

Para quê ler, se isto só traz infelicidade ao homem?

As palavras, estas junções-letras que só formam contradições. Filosofia-moda, uma hora dizem-nos pré-determinados, outra dizem-nos livres... Trocam de certezas como quem troca de roupa, estes, o mais perversos...

Para quê pensar, se isso só traz inquietude ao homem, fazendo-o se sentir cada vez mais só?

Vivenciar emoções, este, sim, é o pecado maior. Diríamos pecado porque esta sociedade nuclear tem na família o símbolo da sua unidade, e desrespeitá-la é nego negar Deus. "O homem se torna anti-social quando lê", afinal, percebe novos mundos, e a farsa daquele que se afirma absoluto...

Não há diversão e não há desvios.

Está tudo calculado, e a televisão que une ‘primos’ da mesma família (a idéia de Estado como uma grande união), impera sobre as tardes. "Vocês não vivem, esperam o tempo passar".

Grandes bibliotecas ainda permanecem escondidas, à espera de alguém que as faça vibrar ou que as tema, decidindo denunciá-las. Seus responsáveis são detidos para passarem por um ‘processo de educação’, e isso tanto se parece com aqueles desaparecimentos ditatoriais Brasil Argentina Chile e tudo o mais, mas não, os livros são queimados para o nosso bem...
Aquela senhora de anos em meio aos livros... Prefere com eles morrer à realidade de uma morte pela metade. Respirava vida, em meio ao fogo: nela, palavras.

"Os livros tornam os homens infelizes", eles teimavam em repetir. "Alguém que leu este livro certamente sabe mais do que quem não o leu" – infelizes os homens porque devem ser iguais. Esta igualdade sinônimo de nivelamento e mecanicidade. Os homens devem ser iguais na sua falta de vida.

Não que esta se encontre apenas nos papéis escritos; ela está também nos em branco, querendo-se dizer, na prática da escrita, no desejo de habitar um fora da linguagem, uma guagueira por dentro da língua maior: uma história que se inscreve no justo contorno, e que faz a vida pulsar, para além dos eus, famílias, Estados, enfim, para além de todo e qualquer instituído... Porque o problema, afinal, não é o de se limitar a sensação a este modo de perceber o mundo, mas, sim, o de se negar a escolha deste tipo de vivência.

Todos grandes escritores Genet Miller Tolstoi Kafka Klossowski Caroll... Até que as margens decidem tornarem-se obras, "homens-livros", decorando aquilo que é palavra, tornando-a carne... "Ali está À espera de Godot, de Samuel Beckett".

Esta potência da obra que se transfigura em vida, o quanto podem mover subjetividades e criar o novo, ou possibilitar o diverso...

Ah, e o que seria Fahrenheit 451, se não fossem eles, os livros? O momento em que se queimam...

Mas da memória dos homens-livros ninguém pode retirá-los...

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