Dos idos anos em que o vídeo cassete estava sendo extinto, e locadoras se desfaziam de seus acervos, lembro da minha tentativa redentora de “salvar” alguns filmes que pensei jamais poder ver de novo. Tenho vários em minha estante, a maioria comprei por um real, talvez mais alguma moeda, mas nada que seja mais caro do que um maço de cigarros. Era, então, uma questão existencial, quase um vício. O que valia não era o preço, mas o valor estético/poético/político/e/afetivo que dava para aquelas imagens-movimento. De alguns poucos que recolhi (tratava-se, de alguma forma de cacos), tenho ainda alguns mofos.
Do Festen, ou “Festa de família”, de Thomas Vinterberg, que eu, de tão emocionada com o achado, comprei sem nem ao menos abrir a caixinha para ver o que tinha dentro. Chegando em casa, em euforia semelhante, depois de praticamente precisar “restaurar” o filme que continha no seu interior {a fita estava cortada, e tive de abri-la e colá-la com fita durex}, coloquei o filme e não conseguia acreditar que se tratava “agora” de um trash-cult-comedian film. Pois é verdade, o que eu tinha ali no interior era um exemplar de um filme que sequer recordo o nome, só lembro que era uma história de uma mulher que, tendo tantos pretendentes, não conseguia escolher nenhum deles para se casar. Pensa que, convidando a todos para jantar consigo em uma mesma noite, conseguiria, observando-os, decidir-se finalmente... Ao que, por dificuldade, resolve não ter a nenhum, e mata a todos {o que, de algum modo, faz com que tenha a todos}... Sei o roteiro porque, de tanta raiva, vi até o final... E tenho a fita até hoje, mesmo sem saber seu nome.
Um outro que levei comigo, pois pensava nunca mais vê-lo, era The Elephant Man, “O Homem Elefante”, de David Lynch. Acho que nem nos filmes de Lars von Trier chorei tanto como em “O homem elefante”... A crueldade mascarada de ajuda, a ciência como uma outra forma de manipulação do homem sobre o homem, criando saberes, mas não modificando o interesse por trás de seus poderes, a vontade de um homem dominar outro homem... O modo como estas atitudes nos parecem tão longínquas, a ponto de as concebermos como “humanas”... É aí que percebo que Nietzsche é tão mal compreendido quando pensam que ele foi o primeiro a dizer isso. E o quanto entendê-lo também como um teórico da vontade de potência nos supõe não uma “cura”, mas um novo modo de olhar para estas questões... E o quanto isto implica numa determinada compreensão de mundo e de filosofia {e, por conseguinte, de cinema}, pois já não importa superar o outro, mas superar-se a si mesmo...
A visceralidade com que Lynch trata neste filme estas relações é, a meu ver, uma das referências presentes nas obras de cineastas como Sergio Bianchi, em tratar sobre relações semelhantes, muito embora este se utilize de uma violência mais física – porém também baseada em comportamentos culturais – como meio de dialogar sobre temas tão fortes como este...
Eis que “O Homem Elefante” está aí em dvd, mas como hoje em dia a difusão da cultura já pode se dar de graça {ou não tão de graça assim, a Claro S.A., que não me deixa mentir}, fiz o download do filme e fiquei muito contente... Por mais efêmero que seja um arquivo de computador.
Mas um que eu nunca {nunca mesmo} pensei que iria encontrar, apareceu-me outro dia. Luna Papa, de Bakhtyar Khudojnazarov. Pureza, beleza, sutileza e um pouco de fantasia. Tudo o que é sublime ronda esse filme, a partir das relações de comunicação mais estranhas que as pessoas podem ter entre si... Poucas vezes um filme me deixou tão maravilhada com o que é mais simples na vida, como a areia, a terra, ou, o “outro”: a lua...
Também foi um filme que obtive de-graça-nem-tão-de-graça, e que, agora há pouco, ao assistir novamente as primeiras cenas – de somente 3 minutos – estas põe-me a observar não apenas a geografia do Tadjiquistão, mas os modos como as geografias podem afetar-nos, a ponto de nos conduzir a certos estados de alma que outras geografias podem (e devem) respeitar, mas não serão jamais capazes de entender, isso porque entendimento passa pela pele, pela experiência... E disso alguns filósofos também já falaram... Aqui, nos Pampas (essa geografia própria do sul do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da região leste da Argentina), o Vitor Ramil chamou de estética do frio...
Percebendo a geografia presente neste filme, as curvas do relevo, acentuadas pelos ângulos que as sinuosidades rochosas vão assumindo {ao longo do tempo}, este e outros fatores contribuem para o modo como as pessoas habitam, se movimentam, se comunicam... e até mesmo impõe o limite de até onde pode ir o seu horizonte {muito embora de cada diferente ponto que se olhe, haja um novo horizonte, como na vida}.
Penso que também pessoas podem ser sinuosas, tendendo a uma adaptação fugidia... Mas não apenas estamos fadados a uma geografia – a do nosso nascimento –, mas a escolhemos, diariamente, nos nossos valores...
O homem é de terra, e eu ainda não encontrei um horizonte que me satisfizesse mais que o Pampa. O horizonte infindo é o limite...
E é, realmente, complicado separar espaço e tempo...
Pois, quanto ao último, também a memória é bastante sinuosa... Foi justamente por conta destes três minutos de geografia-oscilante-em-filme que eu lembrei de tudo isso, e ao relembrar, de certa forma revivi. Revi e recriei o tempo em que eu, com dois reais no bolso, deixava de comprar um sorvete para ir até a loja de vídeos, para, sonhadora, poder salvar dois filmes do esquecimento.
...
...
Belzinha me contou do texto, vim logo acompanhar... lindodlindolindo! dia destes assisti um filme que fala de um cinema nobre assim: necessário, sem roteiro e vivo: Rebobine Por Favor. Um poema cinematográfico.
ReplyDeleteDos horizontes sinto saudades do que repousa a vista pro corpo se movimentar... gosto deste chão.
bjo
Lindo texto. Lindas reflexões!
ReplyDeleteLuna Papa... é difícil de esquecer, o filme, o afeto, a companhia...
Beijo