Explicação desnecessária II:
   
  Recorte feito da seção “Os deslimites da palavra”, do Livro das Ignorãças, de Manoel de Barros. O intuito é jogar com o não pertencimento, com a ruptura da identidade do poema acabado, em busca da leitura que constrói por meio da re-significação. Uma nova ordem, uma nova significação... Outros funcionamentos para os modos diversos de combinação. Enfim, desarrumei ao meu modo a desarrumação do delírio frásico do canoeiro: e que a palavra siga voando fora da asa...
   
   
  DIA UM
   
  Ontem choveu no futuro.
  Estas águas não têm lado de lá.
  Daqui só enxergo a fronteira do céu
  Os nomes já vêm com unhas?
  Ninguém que tenha natureza de pessoa pode
  esconder as suas natências.
  Sou o passado obscuro destas águas?
  Do meu destino eu mesmo desidero.
  Falo sem desagero.
  Meu olho tem aguamentos.
  (Fui urinado pelas ovelhas do senhor?)
  Sou puxado por ventos e palavras
  (Palestrar com formigas é lindeiro de insânia?)
  Não tremulam por mim os estandartes
  Maior que o infinito é o incolor
  Eu sou meu estandarte pessoal.
  Preciso do desperdício das palavras para conter-me
  O meu vazio é cheio de inerências
  Sou muito comum com pedras
  (tirei as tripas de uma palavra?)
  A chuva deformou a cor das horas.
  A placidez já põe a mão nas águas.
  Do que não sei o nome eu guardo as semelhanças.
  (Minha boca me derrama?)
  Não tenho competências para morrer.
  O céu tem mais inseto que eu?
   
   
  SEGUNDO DIA
   
  Não oblitero moscas com palavras
  Uma espécie de canto me ocasiona
  Eu escrevo o rumor das palavras
  Só sei o nada aumentado.
  Eu sou culpado de mim.
  Vou nunca mais ter nascido em agosto
  No chão de minha voz tem um outono.
  Sobre meu rosto vem dormir a noite
  Ajeito as nuvens no olho.
  A luz das horas me desproporciona.
  Sou qualquer coisa judiada de ventos
  Desenvolvo meu ser até encostar na pedra
  Aceito no meu fado o escurecer.
  No ermo o silêncio encorpa-se.
  Confesso meus bestamentos.
  (Dou necedade às palavras?)
  Estou irresponsável de meu rumo.
  Me parece que a hora está mais cega.
  Cheiroso som de asas vem do sul.
  (Sou pessoa aprovada para nadas?)
  Quero apalpar meu ego até gozar em mim
  Ando muito completo de vazios.
  Meu órgão de morrer me predomina.
  Estou sem eternidades.
  Não posso mais saber quando amanheço ontem.
  Está rengo de mim o amanhecer.
  Esfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
  As sujidades deram cor em mim.
  Estou deitado em compostura de águas
  Minha luta não é por frontispícios.
  O desenho do céu me indetermina
  Às vezes passo por desfolhamentos
  O ocaso me ampliou para formiga
  Ajeito os ombros para entardecer.
  Vou encher de intumências meu deserto
  O infinito do escuro me perena.
   
   
  TERCEIRO DIA
   
  (existe um tom de mim no entardecer?)
  Palavra que eu uso me inclui nela.
  Engastado em meu verbo está seu ninho.
  O ninho está febril de epifanias.
  (com a minha fala desnaturo os pássaros?)
  Minha voz inaugura os sussurros
  Nas minhas memórias enterradas
  vão achar muitas conchas ressoando.
  Durmo na beira da cor.
  (Eu tenho amanhecimentos precoces?)
  Não sei mais calcular a cor das horas.
  Alguns pedaços de mim já são desterro
  Me mantimento de ventos.
  Tenho uma dor de concha extraviada.
  Uma dor de pedaços que não voltam.
  Eu sou muitas pessoas destroçadas.